quinta-feira, 14 de março de 2013

A MATRIARCA


              Nunca voltamos. Os lugares mudam todos os dias, como também mudamos. As lágrimas cavam rugas em nosso rosto e as chuvas abrem feridas na paisagem de nossa infância; assim como nós, as casas e as ruas, as árvores e os jardins, estão sempre mudando, porque o tempo as conduz nesse êxodo rumo ao nada, mais próximo de nós, menos próximo das pedras e riachos, das montanhas e rios, que duram muito mais do que a efêmera carne que nos veste a alma.
              Mas se não voltamos ao mesmo lugar, posto que o lugar é sempre outro, voltamos na geografia, em busca do tempo perdido, se posso plagiar Proust. Foi assim que retornei em vão ao velho Pouso do Marimbondo, em que descansavam, no século 18, os tropeiros e seus burros. Como o comércio crescesse e se amiudassem as viagens, uma mulher da vida decidiu levantar ali seu rancho, e servir cachaça e consolo aos passantes. No princípio era só isso. Os próprios tropeiros armavam  trempes e redes, cozinhavam  feijão com charque, roncavam feito bichos, enquanto os burros zurravam. Era de sua promessa a Nossa Senhora que, tirante os deveres de seu ofício, dormiria só, e, só, dormia.
              Com o tempo, surgiram outras raparigas, mais jovens, que ergueram também os seus barracos. De vez em quando uma se emprenhava e paria, como ela mesma, mãe de quatro ou cinco,  e era difícil identificar os pais, sempre esquivos, posto que todos de mulher fixa longe dali, e dinheiro miúdo. E o Pouso do Marimbondo se transformou em patrimônio, com capela devotada a Santa Maria Madalena, como era de seu direito, e depois em distrito, na balbúrdia daquela promiscuidade.
              Ali, em cidade crescida,  passei a infância, descendente longínquo daquela pioneira, sem saber de que linhagem procedia; se dos morenos abugrados, se dos portugueses temperados de mestiçagem. Quando fiquei rapazola, meu pai, ficando viúvo, demandou outros destinos, e de lá saí, montando jumentinha castanha, isso faz muito mais de meio século. Voltei, pensando em comprar fazenda,   faz alguns meses. Na prefeitura me deram um folheto sobre o município: “Pouso do Marimbondo foi criado por bandeirantes que combateram os bugres, e aqui construíram um forte. Chamou-se Pouso do Marimbondo porque o chefe da bandeira, Manuel Lopes Salgado, nobre português de Trás-os-Montes, que estava acompanhado de sua mulher, foi picado por um marimbondo-cavalo, quando levantou a sua primeira casa de pedra, cujas ruínas podem ser vistas à margem do riacho, na praça central”. Vi o que ficara do tugúrio de Chiquinha Dengosa, a esquecida e solidária matriarca da cidade hipócrita e ingrata.     E parti de novo, para nunca mais voltar.              

domingo, 24 de fevereiro de 2013

PLANO DE VÔO


   Esperou que todos saíssem, naquela manhã de domingo, e trancou por dentro a biblioteca. Bem por detrás de seu amado Quixote, encadernado em belo couro de ovelha,  estavam a cola e a tesoura, ali deixados cinco ou seis anos antes. Mais à esquerda, entre Eça e Emerson,  deslocada da fileira de clássicos mais antigos, a Odisséia, em lombada vermelha, sobressaia-se na estante. Dentro dela, a foto de um menino do princípio do século, de calças justas até o joelho, meias altas, botinas de pelica. Nas mãos do menino, o pássaro de papel.

             Era também de um domingo a imagem.  Haviam matado, um pouco antes,   o Arquiduque da Áustria,  em Sarajevo. O pai e o avô, sentados sobre cadeiras de vime branco, tomavam absinto e comentavam as incertezas do século. Eram, o avô e o pai, bons amigos, como costumavam ser, naquele tempo, sogro e genro.  De dentro da casa vinha o som do piano. Quem o tocaria, naquela manhã tão antiga? A mãe ou a tia? Eram tão parecidas, por serem gêmeas, com seus cabelos longos, que ele só as distinguia pelo hálito. O beijo da tia cheirava a alcaçuz; o da mãe trazia o aroma de água fresca.

           De repente ele se viu, naquele ano de guerra,  no meio da varanda, o pássaro de papel entre as mãos. O avô e o pai se aproximaram para ajudá-lo. Disputavam, lembrava-se bem, a alegria de lhe ensinar como armá-lo, prendendo-lhe as asas e lhe torcendo a cauda. Segurou o brinquedo com as duas mãos, finas e magras, para que o pai o fotografasse, com a luz da manhã favorecendo o foco,  e o libertou para o primeiro vôo. O avô lhe disse “muito bem”, e o pai afagou-lhe a cabeça. Ambos voltaram, em seguida, ao absinto e aos perigos do tempo.

           Buscou na gaveta, o resto do material. Com a grossa lupa de entomólogo amador, com a qual satisfazia, rapazola, a curiosidade sobre o sexo   dos gafanhotos e louva-deuses, examinou os detalhes do brinquedo, que a esmaecida foto deixava perceber. Com o lápis riscou na cartolina  as linhas básicas. Acendeu a forte luz sobre a escrivaninha e começou a trabalhar.

          Se o pai e o avô estivessem ali, a seu lado, saberia como fazer bem as coisas. Eles, na certa, conheciam a anatomia daquela ave, com as asas bem riscadas, o dorso verde, o peito amarelo. O avô viria apontar, com o indicador de unha polida, onde colocar os olhos do pássaro, e o pai dobraria a cartolina para nela recortar a ponta das penas. E quando o pássaro estivesse apto para o vôo,  o soltaria.  Içar-se-ia então entre as velhas árvores, até flutuar ao longo do alto muro. Depois cairia extenuado, as asas abertas, sobre o chão salpicado de margaridas miúdas, avoengas daquelas que cobriam o mesmo e pequeno prado de seu tempo de menino.  Por mais viajasse pelo mundo, nunca deixou de viver na mesma casa – e, depois da morte dos pais, no mesmo quarto em que nascera.

         De onde teriam trazido o brinquedo? Talvez da Europa. De lá regressara, um pouco antes, o avô. Era possível que fosse passageiro de uma daquelas grandes arcas, abertas com gritos de espanto pelas mulheres de casa, com peças de seda, cambraias finas da Holanda, linhos de Dublin,  garrafas de bourgogne, absinto e armanhaque. O avô falava nos novos automóveis, citava o nome de Bleriot, confessava-se espantado com o progresso de Paris.

         Deixou um pouco o papel, a tesoura, o vidro de cola e o arame, examinou a corda do relógio. Não se enferrujara, quando, um dia,  o despertador se cansara, o coração metálico obstruído pelo pó e pelo óxido dos anos. Abriu-o, e dele retirou a corda: ela bem serviria para transferir às asas do pássaro a força de seus dedos.

         Agora sabia que seu brevê viera do brinquedo de papel. O pequeno aeroplano, comprado de segunda mão em Montevidéu, fora pintado com as mesmas cores: verde, amarelo, negro. Mais tarde, quando os negócios cresceram – e cresceram à sua revelia – possuíra  o  mais  veloz  dos “beechcrafts” do país, as asas chatas, a aerodinâmica ajustada a seu prazer de cruzar sobre os altos montes, como atento e responsável gavião.

         O telefone tocou, lentamente se aproximou do aparelho, retirou-o do gancho, não respondeu. Era preciso isolar-se, aproveitar o dia sem filhos, sem noras e sem netos, recuperar o pássaro. Não saberia dizer como o perdera; se ratos o haviam roído, se a umidade desfizera suas asas coloridas, se ele fugira em busca de azuis mais fortes.

          No fim da tarde concluiu a tarefa, era verão, o sol brilhava firme. Abriu a janela, a luz de fora banhou os retratos antigos, simetricamente dispostos nos lambris laterais. Ele estava ali, em suas roupas vistosas de aviador, ao lado das hélices de todos os aparelhos que o dinheiro lhe havia permitido.

          Experimentou a cola: o pássaro estava sólido, torceu-lhe a cauda, como lhe haviam ensinado o pai, o avô. Chegou à janela, soltou-o, e o viu ganhar altura, disputar com a brisa do domingo o espaço, e desaparecer, bem longe, além das copas das árvores mais altas.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

AS ROSAS DE AGOSTO


"Guardei-a, até que se desfez, aquela rosa de agosto", conta-me a amiga de Madri. "Procurei, depois, uma fotografia sua, mas os pais desapareceram de Zamora. Não sei se viveram muito depois disso: ela era a única filha. Eles se haviam casado tarde. Não creio que arranjassem, em qualquer lugar do mundo, um pouco que fosse de alegria."

A amiga de Madri era menina durante a Guerra Civil. Antes que fizesse 11 anos, os fascistas tomaram a cidade e Maria foi presa.

“Nós éramos muito amigas. Ela me ensinava as coisas. Tinha um ano a mais. O corpo começava a tomar formas de mulher. E eu lhe invejava os seios que nasciam. Mas era maior em muitas outras coisas. Fazia versos. Recitava-os. Não eram versos piedosos ou bonitinhos. Falavam de justiça, de paz, de igualdade. Não foram os pais que lhe ensinaram coisas assim. Eu acho que ela descobriu sozinha, ou aprendeu com um de seus professores no colégio, que era socialista"

A amiga não se lembra se foi no aniversário da instauração da República ou em outra data nacional que houve o desfile. Deve ter sido em abril, porque a Frente Popular estava no poder. Maria foi escolhida para levar o estandarte. Estava muito bonita, as cores do rosto realçadas pela pintura discreta.

“Eu mesma ajudei a arrumá-la. Depois marchamos pela avenida principal, ela à frente, levando a bandeira. Na porta do ayuntamiento paramos e houve discursos. Maria subiu até o estrado, agitou a bandeira e gritou “Viva a República!”. Depois a formação se dissolveu e fomos juntas levar o estandarte ao colégio. "

Maria, conta a amiga, lia muito e era, na sua classe, das mais adiantadas. As meninas ricas olhavam-na de lado porque era bela, inteIigente, solta. Os pais eram comerciantes pobres, tão discriminados na sociedade daquele tempo como os trabalhadores. Possuíam pequeno armazém, onde vendiam vinho e azeite a granel. As vezes Maria ficava no balcão, para que os dois pudessem sair juntos.

“Quando os fascistas tomaram Zamora, um grupo da 'Falange' prendeu Maria, de madrugada. Eu soube depois que estava, entre eles, um irmão do padre de nossa paróquia, que uma vez jogara um ‘piropo’ a Maria, e ela lhe disse que o dirigisse ao senhor cura, que também usava saias. Era um rapaz esquisito, de espinhas na cara, que não era de andar com amigos nem de fazer 'piropos' normalmente. Eu acho que ele se atreveu naquele dia porque Maria e eu vínhamos do campo e atravessávamos sozinhas a ponte. Pois bem, ele fazia parte da 'Falange' e a gente não sabia. Prenderam Maria e a levaram para uma casa de freiras. Das freiras que tomavam conta do hos­pital. Ali a fecharam em um quar­tinho e, em agosto, a fuzilaram... "

Minha amiga de Madri se chama Libertad. Mas, a partir de 1936, com o triunfo de Franco, mudaram-lhe o nome para Luísa. Por ordem das autoridades, os oficiais de registro civil rasuraram os livros de nascimentos, trocando nomes como Libertad, Alba, Alegria. Isso sem falar nos nomes bascos, por nomes bem católicos. "Soledad podia, mas Libertad, não." A minha amiga de Madri sorri.

“Mas, na escola, meus amigos continuaram a chamar-me Liber, como sempre. Eu, distraída, ganhava faltas porque não respondia ‘presente' na hora da chamada. Oficialmente continuo sendo Luísa até hoje mas nunca assinei este nome. Usei sempre de uma saída esperta: abreviava o Luísa com o ‘L” de Libertad."

Maria morreu em um domingo, juntamente com outros, e pela madrugada. "Eu acordei com os tiros regulares, que vinham do cemitério. Ouvíamos tantos tiros pela madrugada que eu não podia saber que um daqueles se disparava contra o coração de minha amiga. No dia seguinte, os pais, só os pais, foram autorizados a vestir o corpo e a enterrá-lo. Meu pai e minha mãe me contaram e me disseram que chorasse escondida em meu quarto. Não chorei. Fui ao jardim, apanhei a rosa, a maior e mais vermelha de todas as que havia naquele agosto. Guardei-a até que suas pétalas se desfizeram com o tempo. "

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O CIGARRO MOLHADO

A súbita, ou insistente, lembrança de coisas ínfimas, costuma ser a chave da memória, para que revivamos momentos fortes da vida. Pode ser um cigarro que não se acendeu, por estar úmido, ou o esbarrão em qualquer desconhecido, na saída de metrô, em Roma ou Madri. No seu caso, foi o cigarro. Era madrugada em tempo de desesperado apego ao fumo, e  chegara ao hotel, com a roupa totalmente molhada pelo aguaceiro inesperado. Viera do restaurante, na cidade desconhecida, na mesma rua do hotel, mas a quatro quarteirões, o que serviria a uma boa caminhada.
         Havia encontrado o restaurante, vietnamita, por acaso, e a curiosidade o levara a pedir  meia dúzia de pratos exóticos, começando pelos invariáveis enrolados de ervas em papel de arroz. Mas a situação inusitada, a de entrar em restaurante oriental, passada a meia noite, e em país do norte da Europa, nada  diria, se não fosse o cigarro molhado pela chuva, enquanto , ainda jovem, corria o meio quilômetro para chegar ao hotel garni. A vantagem desses pequenos hotéis, sem porteiros durante a noite, é que você recebe suas duas chaves, a da porta principal e a do quarto, e quase nunca  vê alguém. Assim, pôde entrar, tirar a roupa – e procurar o cigarro , a fim de se repor da corrida. Para o fumante, até o cansaço é um apelo à nicotina.
          Retirou o cigarro do maço, e viu que todos eles estavam encharcados, como também algumas cédulas que levava no bolso do outro lado do paletó. Achou que bastariam duas tragadas, e retirou de outro bolso o belo isqueiro de prata, um de seus poucos e  pequenos luxos. A chama era forte, chama para acender charutos, e levou-a à ponta do cigarro. De nada adiantou.Só sentiu o aroma alterado do fumo, que o incitou ainda mais. Decidiu, então, vestir o terno de reserva e esperar, já embaixo, a chuva passar. Iria buscar um bar que estivesse aberto, a fim de comprar o maldito cigarro, sem o qual não poderia dormir. Assim fez. Havia mais ou menos meia hora que esperava, a chuva continuava e ele estava em estado de quase desespero, olhando pela fresta da porta,  disposto a molhar-se outra vez – mas se lembrou de que, então, não teria o que vestir ao deixar o hotel na manhã seguinte.
         Foi quando a porta se abriu para o desconhecido. Viu logo que estava bêbado, pelo cheiro e pela voz enrolada, com que disse boa noite. Respondeu, com timbre neutro, ao cumprimento; não gostava  de conversar com estranhos. Mas a situação era diferente e o desconhecido vinha protegido por uma sólida capa de gabardine: quem sabe teria um cigarro seco que pudesse aliviá-lo?
         O outro  deu o cigarro, mas resolveu contar sua história, engasgadas de brandi as palavras. Convidou-o a seu quarto, mas disso ele soube esquivar-se, mostrando o pequeno salão ao lado, em que serviriam o café da manhã, onde poderiam falar-se. O recém-chegado despejou a desgraça: sua mulher o deixara, havia poucos dias, e, pelo que soubera, ela o trocara “por um encardido sulamericano”. Tratou de falar muito rápido, para que o desconhecido não lhe identificasse o sotaque, e agradeceu, pelo menos naquele momento, a circunstância de sua ascendência européia, de pele e olhos claros; não podia ser visto, pelos  olhos magoados do interlocutor, como um mestiço schmutzig, como o nórdico  se referira, com desdém, ao seu rival.
          O que ele lhe poderia dizer? Pensou em ser franco:  nada tinha a ver com aquilo. Que o outro procurasse um amigo velho, o pastor ou o padre, conforme sua crença e, no último caso, um psiquiatra que lhe receitasse uma pílula qualquer de esquecimento, ou do regozijo. Lembrou-se de um colega brasileiro, que aconselhava, em casos semelhantes, arranjar outra mulher imediatamente, nem que fosse por pouco tempo,  mas mulata: ninguém melhor do que uma mulata para curar dor de cotovelo.
            Pediu desculpas por não saber ajudá-lo, em  questão tão pessoal e íntima. Se ele quisesse um conselho sobre o mercado de capitais, talvez  lhe pudesse ser útil, mas não em assuntos como aquele. Ousou saber de que cidade era o homem triste e bêbado, e ele disse. Disfarçou o olhar, para não enfrentar o rosto do outro, e lhe perguntou o nome. Ao ouvi-lo, teve certo desassossego. Para ter certeza, jogou seu verde, ao aconselhá-lo a arranjar imediatamente uma mulata que o consolasse naquela circunstância.
            Não soube se o outro sorriu, ou se fez uma careta, posto que  mirava os  sapatos ainda úmidos que lhe esfriavam os pés.
            - Mas ela é mulata, meu caro, do Haiti, e de olhos azuis - disse o bêbado.
            Concluiu que nada podia realmente fazer, deu boa noite, subiu. Fechou bem a porta do quarto, dando duas voltas na chave, arrumou a maleta, com a roupa molhada envolvida no exemplar de “Die Welt” daquele dia, e, como já pagara a diária, como é costume nesses hoteizinhos, em lugar de sair às seis, partiu logo que estiou. Ao passar pela porta não olhou para o pequeno salão de café, mas teve a certeza de que o outro ainda estava por lá, esparramado no sofá de espera.  Tomou o primeiro trem de volta a Berlim, onde o aguardava uma mulata haitiana, de belos olhos azuis. E é claro, que depois daquilo, não esperou uma semana para trocar de país, levando a mulher para  o seu novo destino.
          
        




quarta-feira, 21 de setembro de 2011

DUAS MIL LUAS

- “Amanhã fará 40 anos que a espero, todas as sextas-feiras, neste mesmo banco de jardim. Amanhã não voltarei mais a  sentar-me aqui” – disse, de repente, o homem. Não posso dizer o velho senhor, porque, sendo mais ou menos de minha idade, eu não o via senão jovem, como jovem sempre me sinto. Não fosse essa ilusão, que nos anima, e que poucos confessamos, a velhice seria uma insuportável agonia, a agonia que devem sentir os condenados à morte, no corredor de espera, em alguma prisão do Texas. Enfim, todos somos condenados à morte, mas quando chega o amanhecer de cada dia, sentimo-nos indultados – quando mais não seja para mais uma jornada, sempre bela, faça o tempo que fizer. Foi o que pensei – e sou rápido em pensar, as cenas sempre se sucedem na minha mente como se o operador de cinema de antigamente, ao passar o filme, acelerasse o movimento da manivela, e o lerdo cavalo de D. Quixote passasse a galopar.
            Tudo isso eu pensei, enquanto o homem fazia uma provocadora pausa e me olhava, desafiador. Eu sentara no banco ao lado, ofegante pelo calor deste absurdo fim de inverno.  Talvez supusesse que eu lhe desse a corda da curiosidade, mas me fiz de desinteressado:
            - O senhor me está dizendo que amanhã já é sexta-feira? Que estranho, eu pensei que hoje fosse ainda quarta. Estou atrasado – comentei, sem perceber que lhe oferecia a deixa.
            - Atrasado sempre estive eu, meu amigo – respondeu. – Atrasado nos negócios, atrasado no amor, atrasado na vida. Sempre me agarrei ao perdido, nunca fui capaz de desistir do que não seria meu, e de buscar o que a vida me poderia facilmente dar. E aqui estou, há quarenta anos esperando a mesma mulher, semana a semana, nestas duas mil luas.
                  Observei, então, que ele se adiantara: por que não esperara o dia certo, a sexta-feira, para então desistir da espera? Explicou-me que guardava uma esperança, já que tomara a decisão: a de ficar sentado no bar da esquina, olhando de longe. Se ela aparecesse, embora isso lhe parecesse impossível, ele não iria encontrá-la: sairia da pequena varanda do bar pela rua lateral. Seria a sua vingança. Afinal, ela o deixara plantado durante quarenta anos; se aparecesse por acaso, ou movida de alguma ilusão,  teria a surpresa de sua ausência. Talvez - ele prelibava a possível desforra - ela, depois de tantos anos, quisesse vê-lo, e confessar que o amara durante todo o tempo, e se arrependera de faltar ao encontro daquela sexta-feira de 1971.
            Ouvi, calado, mas decidi azedar o projeto do cavalheiro. E se, na verdade, ela não houvesse comparecido ao encontro por uma fatalidade: a morte de um parente, talvez a do próprio marido, se fosse casada, ou, com maior razão, se um filho ou filha tivessem sofrido um acidente?
           Ele ficou subitamente sério, mas me esclareceu que, naquele primeiro e único encontro que tiveram, sem conclusão razoável (ele lhe dera um beijo muito rápido e discreto, que apenas roçou seus lábios, me disse), ela lhe explicou que nunca fora casada, e isso parecia certo, porque era ainda jovem, deveria ter, no máximo, uns 25 anos.
          - E se ela tiver morrido? As pessoas morrem, meu amigo, em qualquer idade e sem aviso prévio.
          O homem ficou mais sério ainda e me perguntou se eu era, por acaso, muito infeliz. Disse-lhe que era um homem comum, com a dose habitual de aborrecimentos: dores reumáticas, anúncio de catarata, patrimônio minguado, aposentadoria indecente e o reles emprego de agente de seguros de automóveis, para garantir o pão de cada dia.
           Quando, ao responder à sua insólita pergunta, eu lhe disse que não, eu não tivera amor algum, que tivera alguns casos fortuitos que não chegaram ao terceiro encontro, pois eu era muito exigente e queria mulher que fosse tão bela quanto inteligente, e que me parecesse mais ingênua do que devassa, ele se levantou. Olhou-me com desdém e desafio e me disse que eu lhe estragara não só o dia como a vida, que eu destruíra seus quarenta anos de ilusão com um racionalismo calhorda, que eu não devia lhe ter dirigido a palavra.
           - Desculpe-me, lembrei-lhe, quem falou primeiro foi o senhor. Por isso eu não gosto de conversa com estranhos.
           - Nem eu – respondeu-me, enquanto, forçando as pernas já naturalmente preguiçosas, o corpo próximo da obesidade, o velho  - percebi que era, pelo menos no passo indeciso, bem mais velho do que eu - saiu da praça. Pelo lado contrário do bar, no qual pretendia vigiar a manhã seguinte, com seu banco e o espectro de uma mulher que talvez nem sequer houvesse existido. Foi o que pensei, enquanto retornava à minha vida normal, de homem tranqüilo, com minha família, minha carreira e mais ou menos feliz. Não me arrependi de lhe haver mentido. E fiquei com a forte suspeita de que ele também mentira, e quisera, apenas, com a sua história, ter a atenta companhia de um ser humano. É provável, e pode ser improvável. Como diria Cervantes, vale.
             

terça-feira, 6 de setembro de 2011

OS AROMAS DO MUNDO

Era, como me disse na primeira vez que nos vimos, um europeu degenerado. Seu caráter, confessava com saudade, fora amolecido pelo calor dos trópicos, e ele os conhecia “na cintura baixa do mundo”, de um lado e do outro. Vivera a boa latitude sul na América, na África e na Ásia, e guardara melhores lembranças de Madagascar, aonde fora como funcionário do colonialismo francês, menos por necessidade e mais pelo exotismo da grande ilha. Ali se convertera a vagabundagem bem amparada pela renda de vinhedos da Gironda, explorados por sua família desde os tempos do ducado de Aquitania.

“Descobri que, nos trópicos, os sentidos se aguçam, porque as coisas têm mais essência. Não me lembro bem dos aromas de nossa casa, e os meninos sempre têm narinas sugadoras, mas não me esqueço do cheiro das mestiças dos portos de Majunga e Tamatave”, me dizia, em um bar da Schiffamtsgasse, em Viena, bem perto de Danúbio.

Tenho sempre o espírito desarmado diante dos estranhos, porque me tocou viver muito entre eles e ser um deles. Naquele tempo eu morava em Praga e ia com freqüência à Áustria. Ele estava de passagem, e fiel a si mesmo, buscara o cais fluvial. “Quem não tem mar se arranja com os rios”, me falava enquanto tomávamos excelente vinho romeno.

E continuou a defender a tese de que só vale a pena viver nos trópicos, mas enquanto se pode bem desfrutar dos prazeres do mundo. “Não são apenas os cheiros: são também as cores. Não há delicadeza nos tons; são agressivos. Tampouco se separam bem uns dos outros, as cores acompanham a vontade geral de promiscuidade e de troca de identidade: há verdes que amarelam, e amarelos que invadem o campo do azul. Agora, quando chegam as cataratas aos olhos, para que servem os trópicos? Quando bambeiam todas as pernas do homem, por viver entre as mulatas da Bahia e as lisas indochinesas? Não entendo como, na sua idade você está aqui na Europa.”

Não me convinha , então, revelar-lhe os motivos. Para certos assuntos, os estranhos devem continuar estranhos, por menos cautelosos sejamos. Do vinho, violando o bom gosto e as cautelas digestivas, passamos para a cerveja e salsichas, e nos despedimos no Ring, com a indiferença daqueles que não esperam reencontros.

Mas nos revimos. Missão profissional me levara a St. Jean de Luz, no país Basco francês. Ali se vive enganosa segurança e eu, que devia encontrar alguns bons rapazes de Euzkadi-Sul, tinha de me cuidar para não dar bandeira aos agentes espanhóis que deviam estar de olho em meus contatos. Só o vi, felizmente, depois de cumprida a tarefa. Estava montado em velha motocicleta e chegou à estação ferroviária no momento em que eu descia do táxi. Fez-me trocar o destino e seguir com ele até sua terra. Despachou a moto para o destino que era o seu e que me impunha, e se disse livre para um copo de vinho, se eu pagasse. “Da última vez, a conta foi minha, você se lembra? Agora é a sua vez”.

Enquanto esperávamos o trem tomamos vinho navarro, porque ele já não se fiava dos burdôs. “Ainda bem que não há mais família, nem há mais vinhedos. Vendi-os há tempos. Agora os irrigam tanto, para que produzam, que o vinho perdeu a postura.”

Contou-me que a fortuna acabara. Por sorte não se casara, não deixava herdeiros na miséria. Fizera a sua parte, gastando o dinheiro em viagens. Só lhe restava pequena propriedade, da qual não podia desfazer-se, e que recebia agora seus cuidados. Eu iria vê-la. Contava também que com a venda dos bens maiores, levantara dinheiro para derradeira viagem em torno do mundo, em latitude certa e preferida: na altura do paralelo 20, um pouco acima do trópico de Capricórnio.

Não fora boa a volta. A mente ainda estava acesa para certos prazeres, mas os nervos e músculos já se encontravam afeitos ao desconsolo. “Você já ouviu falar em holografia? É um sistema novo que serve para reproduzir imagens em três dimensões. As belas malgaches que eu vi, agora, eram como dessas estatuas de sombra. Eu as via e as queria, mas meus braços não as tocavam.”

Cheguei à aldeia, que um dia fora a vida do derruído castelo da família, na garupa de sua moto. Algumas pessoas saudavam-no com reverência, outros fingiam não vê-lo. “Infelizmente não posso oferecer-lhe hospitalidade, você a recusaria. Eu mesmo, no principio, sentia-me mal. Mas, como é a única propriedade inalienável que me deixaram os antepassados, tenho que me acostumar a pernoitar ali”.

A propriedade era sólida, de granito escuro, tosco, as quinas alisadas pelo sopro dos séculos, um amplo e majestoso tumulo, quase uma capela, adornada por anjos de olhos baixos, jarros sem flores, a relva descuidada em torno do jazigo.

“Ajeitei-o por dentro, dá para espichar as pernas e cozinhar a sopa. O pároco quis expulsar-me, mas o juiz, livre-pensador, reconheceu-me o direito. É uma espécie de adiantamento do legado”, explicou. “Afinal, no futuro, eu vou ficar aqui.”

CAÇA NOTURNA

Era um pequeno país, ocupado por tropas inimigas. Como ocorre nessas situações, não faltavam os colaboracionistas canalhas. Um deles, antigo assaltante à mão armada, e que cometera vários latrocínios, fora libertado da prisão por ordem do governo títere, a fim de integrar a equipe de interrogadores da polícia política, comandada pelos oficiais estrangeiros.
               Não era um brutamontes comum.  Tratava-se de  criminoso frio, senhor de raciocínio rápido e lógico. Tinha suas leituras e conhecia, como poucos, as histórias reais e fictícias de grandes matadores. Um só homem seria capaz de interromper seus atos abjetos, e esse homem fora seu companheiro de delitos e de cárcere. Quando soube da crueldade com que ele agia como torturador de suspeitos de pertencer à pequena e heróica resistência, o antigo companheiro decidiu que deveria matá-lo. Não pertencia a qualquer grupo; na verdade, até então lhe era indiferente ser governado por nacionais ou estrangeiros. Como sempre agira fora da lei, não se sentia membro da sociedade e, menos ainda,  patriota. Mas não podia aceitar que o companheiro se misturasse aos policiais, a eles servisse, para seviciar pessoas que estavam também contra a lei, como eles sempre haviam estado.
               Poderia armar-lhe uma emboscada, mas sabia que, astuto como sempre, dificilmente cairia no laço. Era preciso agir como agiam os resistentes, e seria melhor atribuir a eles a execução. Primeiro, porque isso o protegeria. E depois, pensando bem, como eram os resistentes jovens de grande coragem, seria uma forma de ajudá-los, na construção de sua fama e  futura glória. 
                 
                   Durante muitas semanas, usando vários disfarces, seguiu-o em sua rotina. Estava sempre protegido por um ou dois policiais de escolta, e isso tornava mais difícil construir  plano seguro para o ato necessário. Se matasse quem o estivesse protegendo – o que teria que ser feito antes – haveria tempo para que ele percebesse e reagisse, o que seria muito perigoso. E, mais: como se tratasse de um vil traidor, vivia junto com outros sujeitos também canalhas, em pequeno quartel da Polícia. Não tinha como atingi-lo em casa, e dormindo, de preferência. Mas a grande arma do caçador é a paciência. Uma noite, quando já desistia da espera, em ponto conveniente do caminho, notou que seu guardião daquela noite estava bêbado. Com a boa e silenciosa arma, a bola de bilhar dentro de uma meia de cano longo, os passos ligeiros de felino atrás da presa, aproximou-se e deu o golpe seco, um pouco acima da nuca do bêbado que cambaleava. O outro voltou-se rapidamente, ao ouvir o baque do corpo sobre a calçada.  A rua estava deserta, eram apenas os dois. T., o torturador, reconheceu-o logo. Na hesitação daqueles segundos, N., o justiceiro, fingiu-se assustado e surpreso, como se, só naquele momento, soubesse de que se tratava do antigo comparsa. A luta foi curta. T. levou a mão ao coldre, sacou a arma, enquanto N. o atingia com a mesma funda, no queixo, que se abriu, jorrando sangue. T. disparou dois tiros,  um atingiu N. no braço esquerdo, o outro, no pulmão.  Agarraram-se, trôpegos, ambos feridos. N. conseguiu golpear mais uma vez, embora,  a tão curta distância, sua arma fosse quase inútil. Não desistiu, e a mão direita conseguiu arrancar a arma do contendor e disparar duas vezes contra o ventre, no vão macio por debaixo das costelas, de baixo para cima.
           Os tiros haviam atraído a patrulha policial que protegia a área. “É uma briga particular”, disse T., o torturador, pouco antes de morrer. Conduziram N. ao hospital. No caminho, com muitas dores e cansaço, ele pensou bastante no que fora a sua vida e no filho que abandonara e já devia estar um homem. Quando o médico disse ao chefe dos policiais que seria melhor leva-lo logo para o necrotério, cresceu em si mesmo. Identificou-se com o verdadeiro nome, que não usava desde o primeiro assalto. Buscando reservas de força no pulmão inundado de sangue, tentou gritar,  a voz saiu curta e soturna, mas clara: Matei um traidor! Viva a nossa pátria! Médico e enfermeiros o olharam com cautelosa simpatia. Um dos policiais praguejou, o outro olhou para o teto.
           Sentiu-se repentinamente leve, cansado e sonolento. A dor passou. Em segundos, seus olhos se fecharam, e ele parecia feliz.