quarta-feira, 21 de setembro de 2011

DUAS MIL LUAS

- “Amanhã fará 40 anos que a espero, todas as sextas-feiras, neste mesmo banco de jardim. Amanhã não voltarei mais a  sentar-me aqui” – disse, de repente, o homem. Não posso dizer o velho senhor, porque, sendo mais ou menos de minha idade, eu não o via senão jovem, como jovem sempre me sinto. Não fosse essa ilusão, que nos anima, e que poucos confessamos, a velhice seria uma insuportável agonia, a agonia que devem sentir os condenados à morte, no corredor de espera, em alguma prisão do Texas. Enfim, todos somos condenados à morte, mas quando chega o amanhecer de cada dia, sentimo-nos indultados – quando mais não seja para mais uma jornada, sempre bela, faça o tempo que fizer. Foi o que pensei – e sou rápido em pensar, as cenas sempre se sucedem na minha mente como se o operador de cinema de antigamente, ao passar o filme, acelerasse o movimento da manivela, e o lerdo cavalo de D. Quixote passasse a galopar.
            Tudo isso eu pensei, enquanto o homem fazia uma provocadora pausa e me olhava, desafiador. Eu sentara no banco ao lado, ofegante pelo calor deste absurdo fim de inverno.  Talvez supusesse que eu lhe desse a corda da curiosidade, mas me fiz de desinteressado:
            - O senhor me está dizendo que amanhã já é sexta-feira? Que estranho, eu pensei que hoje fosse ainda quarta. Estou atrasado – comentei, sem perceber que lhe oferecia a deixa.
            - Atrasado sempre estive eu, meu amigo – respondeu. – Atrasado nos negócios, atrasado no amor, atrasado na vida. Sempre me agarrei ao perdido, nunca fui capaz de desistir do que não seria meu, e de buscar o que a vida me poderia facilmente dar. E aqui estou, há quarenta anos esperando a mesma mulher, semana a semana, nestas duas mil luas.
                  Observei, então, que ele se adiantara: por que não esperara o dia certo, a sexta-feira, para então desistir da espera? Explicou-me que guardava uma esperança, já que tomara a decisão: a de ficar sentado no bar da esquina, olhando de longe. Se ela aparecesse, embora isso lhe parecesse impossível, ele não iria encontrá-la: sairia da pequena varanda do bar pela rua lateral. Seria a sua vingança. Afinal, ela o deixara plantado durante quarenta anos; se aparecesse por acaso, ou movida de alguma ilusão,  teria a surpresa de sua ausência. Talvez - ele prelibava a possível desforra - ela, depois de tantos anos, quisesse vê-lo, e confessar que o amara durante todo o tempo, e se arrependera de faltar ao encontro daquela sexta-feira de 1971.
            Ouvi, calado, mas decidi azedar o projeto do cavalheiro. E se, na verdade, ela não houvesse comparecido ao encontro por uma fatalidade: a morte de um parente, talvez a do próprio marido, se fosse casada, ou, com maior razão, se um filho ou filha tivessem sofrido um acidente?
           Ele ficou subitamente sério, mas me esclareceu que, naquele primeiro e único encontro que tiveram, sem conclusão razoável (ele lhe dera um beijo muito rápido e discreto, que apenas roçou seus lábios, me disse), ela lhe explicou que nunca fora casada, e isso parecia certo, porque era ainda jovem, deveria ter, no máximo, uns 25 anos.
          - E se ela tiver morrido? As pessoas morrem, meu amigo, em qualquer idade e sem aviso prévio.
          O homem ficou mais sério ainda e me perguntou se eu era, por acaso, muito infeliz. Disse-lhe que era um homem comum, com a dose habitual de aborrecimentos: dores reumáticas, anúncio de catarata, patrimônio minguado, aposentadoria indecente e o reles emprego de agente de seguros de automóveis, para garantir o pão de cada dia.
           Quando, ao responder à sua insólita pergunta, eu lhe disse que não, eu não tivera amor algum, que tivera alguns casos fortuitos que não chegaram ao terceiro encontro, pois eu era muito exigente e queria mulher que fosse tão bela quanto inteligente, e que me parecesse mais ingênua do que devassa, ele se levantou. Olhou-me com desdém e desafio e me disse que eu lhe estragara não só o dia como a vida, que eu destruíra seus quarenta anos de ilusão com um racionalismo calhorda, que eu não devia lhe ter dirigido a palavra.
           - Desculpe-me, lembrei-lhe, quem falou primeiro foi o senhor. Por isso eu não gosto de conversa com estranhos.
           - Nem eu – respondeu-me, enquanto, forçando as pernas já naturalmente preguiçosas, o corpo próximo da obesidade, o velho  - percebi que era, pelo menos no passo indeciso, bem mais velho do que eu - saiu da praça. Pelo lado contrário do bar, no qual pretendia vigiar a manhã seguinte, com seu banco e o espectro de uma mulher que talvez nem sequer houvesse existido. Foi o que pensei, enquanto retornava à minha vida normal, de homem tranqüilo, com minha família, minha carreira e mais ou menos feliz. Não me arrependi de lhe haver mentido. E fiquei com a forte suspeita de que ele também mentira, e quisera, apenas, com a sua história, ter a atenta companhia de um ser humano. É provável, e pode ser improvável. Como diria Cervantes, vale.
             

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